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Contos & Crônicas

Capítulo 6 - Turcão

"Dna. Inês, com aquele jeito que só ela sabia falar, cuidadosa e respeitosa, achou que era hora de contar.."

15/02/2023 - 10:28 | Atualizado em 27/11/2023 - 11:02

Turcão

A menina Alvinês virou moça e tornou-se a administradora geral das Lojas Mocó & Antunes, título que homenageava os dois avôs: Tião Mocó pai de Alvaro, a quem todas as contas ensinou, e Antunes pai de Inês que, além de deixar um bom pé-de-meia, nunca se queixou por ajudar a criar os meninos respeitando o triste fado que foi a prisão de Álvaro pela morte do doutor Valdecruz (por assédio do capeta!). 

Foram dez anos vividos no outro mundo tão díspar da índole pacata de "Arvinho", até que a Secretaria da Administração Penitenciária lhe concedesse a liberdade condicional para os dois terços restantes da pena por bom comportamento. Ficou devendo, no entanto, de apresentar-se todas as semanas à autoridade local, o Tenente Troncoso, depois Capitão, que deu lugar a outro e mais um, tantos anos se passaram para que nunca se esquecesse de tão doída coima. 

A menina Alvinês continuava, mesmo depois de crescida e no domínio das verdades, vendo o pai como um sujeito que foi para "Andômeta", embora já tivesse descoberto nas aulas de geografia que a fantasia criada por sua mãe era com Andrômeda, a galáxia milhões de anos-luz distantes da Terra.  Alvinês, no entanto,  guardaria para sempre aquela imagem do pai e suas cartinhas azuis  - o que representava para ela uma espécie de liberdade pessoal de forma que esse impulso lúdico pudesse se sobrepor à tirania  da razão.     

E mais: as lendas construídas sobre seu avô Tião Mocó davam sustentação às eteriedades da família, fato de muito orgulho. Consta que Tião Mocó era capaz de premonizar o sexo do bezerro antes de nascer, as secas e as cheias do Rio Ivai, a chegada de estranhos no lugar, a morte do vaqueiro Bridão por afogamento, a morte de Tortuga por raio quando tentava carregar em fuga a mulher de Zébão, a descida do Arcanjo para prender os oito bandidos que tentaram surrupiar as imagens da capela do Extremo... e um dia adivinhou até os números do prêmio da loteria! Desta sorte, só abusara uma vez, o que não deu em boa coisa, pois “os santos não autorizam ninguém a tirar vantagem nas searas terrenas”.  

Foi assim que  sua fama rodou por aquelas bandas, a partir das narrativas que  Mané-Boca-Larga, dono da Venda da Esquina de Forquilha, segredou a um por um de sua freguesia, até seus últimos dias de vida. Estava, portanto, provado: os ascendentes de Alvinês tinham vindo do outro mundo.

Agora, enquanto Alvinês cuidava das contas da Mocó & Antunes, seu irmão Joselito ia sendo traquejado pelo pai nas vendas das lojas, que já eram duas, pois que lhe coube fundar uma filial em comunidade vizinha até onde a boa fama avançara. 

Apesar de azucrinado de ciúme, o irmão ia compreendendo que Alvinês já andava no ponto de casamento e, embora bons partidos não lhe faltassem entre as famílias convivas, estava a moça a tratar, com mais vagar que o costume, o atendimento a Samir, o viajante libanês que trazia tecidos da capital para vender na região. Um dia Joselito espreitou pelo vão da porta que havia sorrisos nas conversas e um modo azeitado do mascate se dirigir à sua maninha. 

O “Turco” sempre cumpriu com as entregas, concedeu descontos  na hora da venda e deu crédito à loja para pagar tudo em prestações.

Foi o bastante para fazer Joselito acusar a irmã de não apertar o “Turco” suficientemente para ter mais descontos por pagamentos tão pontuais. Álvaro, com seu enraigado senso de justiça (mais que provado pela própria entrega que se fez à polícia, após sair daquele terrível transe pela morte do doutor Valdecruz),  ponderava sobre a firmeza de Samir que sempre cumpriu com as entregas, concedeu descontos  na hora da venda e deu crédito à loja para pagar tudo em prestações. Assim, não demorou a decidir: eram justos os pagamentos ao “Turcão” como eram acertados.

Foi o bastante para Joselito rebelar-se a dizer “não sou ouvido pelo pai”. E daí, por diante, suas inspeções à filial da loja já não eram a mesma coisa, voltava com rendas diminutas e sem as listas de vendas e do estoque com a devida retidão. 

Sempre sóbrio e voz grave, Álvaro chamava Joselito aos conselhos, seguidos de explicações para todos os assuntos, enfrentando a repulsa do filho inconformado com o que lhe parecia parcialidade do pai.  A situação se agravou mais quando  tentou elucidar o filho sobre  a origem libanesa do nome Samir e explicou que ele não gostava de ser chamado de “Turcao”, graças às históricas guerras entre o Líbano, a terra de seus pais, com a Turquia. Era o melhor que Álvaro podia explicar para um problema que, na verdade, começa lá na conquista de Constantinopla.

Resoluto, Joselito saiu da loja do pai para independer-se... “ia cuidar de sua vida sozinho” e informando que ia trabalhar como ajudante de caminhão de Zé Galdino. Mais tempo passava nas viagens pela região, mas chegou a conhecer até a capital nas cargas que o camioneiro conseguia fosse por conta própria ou por subcontratos de firmas grandes. Não se ganhava muito mas a alegria das novas paisagens e cidades compensavam. Pouco tempo se passou, até que a cirrose derrubasse Zé Galdino na cama indo a consumir tudo o que tinha, menos o caminhão que ia enferrujando no fundo do quintal por falta de comprador.

O próprio Álvaro agora tocava as vendas das duas lojas e não aceitou a proposta de volta do filho, enquanto Alvinês crescia no seu conceito, hoje já namorando de fato o mascate Samir, que vinha à miúde ao município - embora ai só tivesse esse freguês – mas nada poderia ser melhor. Alvinês arredondava as formas de seu corpo e passava a cuidar melhor dos cabelos pretos e lisos a cobrir um dos olhos até escorrer sobre os ombros delicados. Ele, por sua vez, sempre de terno bem talhado que resistia à poeira vermelha daqueles solos,  bigode fino e bem aparado, cabelos engomados divididos ao meio. Eles sabiam que esses cuidados eram reservados um para o outro. 

Álvaro, no afã de educar o filho com correção, prometeu-lhe comprar o caminhão do ex-patrão desde que dele exigisse intensas lições para passar no exame para tirar uma carta de motorista profissional. Na condição da compra, teria também a promessa de ajuda para conseguir os fretes regionais e os subcontratos das companhias grandes. Foi uma árdua tarefa mas a etapa foi superada com gáudio em curto tempo. Com astúcia, naquela quadra da vida, Álvaro alcançou boa paz entre todos, pois que, com isso, “Turcão” passou a ser chamado pelo cunhado pelo nome certo e Alvinês voltou à antiga dedicação ao mano até a preparar-lhe a mala de viagem na qual sempre incluía comprimidos de Melhoral e Leite de Magnésia, gorro para o frio e calção para banhar-se nas cachoeiras dos caminhos e, sem que os pais soubessem, um pacote de cigarros Continental para poder se distrair nas viagens.

Um dia, Dna. Inês, com aquele jeito que só ela sabia falar com o marido - que mesmo sendo de paz, como todo homem sofrido, também adquirira lá as suas torpezas - cuidadosa e respeitosa, achou que era hora de informar: 

- Arvinho, é bom que saiba antes, o  vai pedir Alvinês em casamento – calou-se a espera da reação:
- Saiba, mulher, que estou a esperar desde o dia que o Joselito avisou que tinha ciúme do mascate.
- Então, nada tem a estranhar, marido?
- Nada. Só tenho alegria de receber esse moço que chegou aqui na paz, vem fazendo sua vida como mascate de tecido, se esforça pra ver nossa menina sempre que pode, é de família de gente sofrida igual a nós e veio de longe trazendo mais cultura pra nossa família. A bênção pra eles, Deus há de cuidar.

A festa do casamento de Alvinês com Samir trouxe só alegria à família e a mais de uma  centena de convidados; a cidade inteira se regozijou com o evento – uma dádiva para o cidadão Álvaro. Seguido ao corte do bolo, o anfitrião informou em alta voz o dote que guardava para o genro: “...a filial da vizinha Ribeirão das Onças”, o que de certa forma era esperado pelos nubentes porém não tão cedo. O anúncio da doação entristeceu Joselito dum tanto que se deitou a beber muito mais, de modo que seu despreparo a tal demanda podia aguentar, pondo-se a mãe a cuidar de si pela noite adentro com a limpeza de suas vomições e as intermináveis fervuras de folhas de boldo.   


(Segue com "As chicas paraguayas & cia" - Capítulo 07) - Clique aqui para ler

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