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Contos E Crônicas

Capítulo 3 - Arvinho I

O ritual das marretadas - tof, tof, tof – um som ôco de melancia madura - era logo seguido pelo ploft da queda do garrote gordo.

15/02/2023 - 10:24 | Atualizado em 27/11/2023 - 11:07

Arvinho I

 

O sangue começa a escorrer na quarta ou quinta marretada na fronte e outra vez, e mais outra, até cair. Uma rotina, não fosse pelo fato de que de vez em quando vinha uma súbita visão que trocava a cabeça do animal pela do Doutor Valdecruz que certamente sucumbiria na primeira pancada.

 “Assédio do capeta” – pensava. Só podia ser um espírito do mal que esboroava seus pensamentos bons para dar lugar a um estrupício desse que espavoria Arvinho - aquele que nasceu Alvaro mas recebeu esse carinhoso diminutivo acrescido da troca do L pelo R como convinha ao dialeto local. “Assédio do capeta”, embora o espírito de Arvinho já tivesse a amansação de Cristo no batismo e no catecismo e por isso quando surgia essa ideia escabrosa invocava Santa Helena Curadora dos Maus Pensamentos assim rezando baixinho: “Santa -Helena-seja-minha-advogada-junto-a-Nosso-Senhor-Jesus-Cristo-defendei-me-Senhora-das-tentações-dos-perigos-das-aflições-dos-maus-pensamentos-e-dos-pecados...”  E com o terço feito com contas de lágrimas de Nossa Senhora que mantinha no bolso, nessas horas  recitava baixinho as suas rezas. 

O ritual das marretadas - tof, tof, tof – um som ôco de melancia madura - era logo seguido pelo ploft da queda do garrote gordo no piso vermelhento. 

"Tof, tof, tof - um som ôco de melancia madura logo seguido pelo ploft..."

Em pouco tempo seria lavado, esquartejado, selado nas ancas com a marca do serviço sanitário e levado para os açougues locais até chegar às mesas de comensais que nem de longe pensariam sobre a saga do boi hindu que um dia foi sagrado, em outro chamado de gabiru, garrote, depois capado e finalmente apreciado como boi-gordo... mas agora pomposamente promovido como “Carne Aprovada Com Selo de Garantia do SIF”. 

Em pouco tempo seria lavado, esquartejado, selado nas ancas com a marca do serviço sanitário e levado para os açougues locais até chegar às mesas de comensais que nem de longe pensariam sobre a saga do boi hindu que um dia foi sagrado, em outro chamado de gabiru, garrote, depois capado e finalmente apreciado como boi-gordo... mas agora pomposamente promovido como “Carne Aprovada Com Selo de Garantia do SIF”. 

Mas Arvinho percebia o sentimento de comiseração tomando conta do recinto a cada lote apartado nos corredores emburcados na direção do sacrifício a partir de compartimentos que iam se estreitando, e por isso chamados “seringas”, e os comprimindo de modo que nunca faltava bicho na área do abate. Os intermitentes mugidos de  triste barítono anunciavam um sentimento de comiseração entre eles que provocava arrepios em Arvinho. 

O patrão nunca desconvenceu Arvinho em sua crença no sentimento dos animais, quaisquer que fossem, mas principalmente dos bois nesta fileira sem volta descarregando pelo caminho fezes verdes com suas impertinentes caudas sujas batendo um na cara do outro. O cheiro forte da uréia misturava-se a outro: o do medo. Cheiro de medo exalado pela glândula ad-anal de mamíferos. Se medo é sentimento, Arvinho podia não saber explicar a ciência do assunto, mas lhe bastava a intuição. 

Sob sua fiscalização, os homens - incluam-se os verdugos, caras massudos que se orgulhavam da força e precisão de suas marretadas para abater 12 bois por hora e quando apertava podia ser 15 ou até mais - executavam suas tarefas impelidos pelo rigor de Arvinho, que acabava no final resignado com a rotina e por isso mesmo já não sentia dor, remorso ou qualquer culpa, pois, pensando bem esse era um trabalho digno e importante tal qual a criação, a recria e a engorda do boi, porque as pessoas tinham que ser alimentadas com a sua proteína como explicavam os doutores veterinários que eram os que tinham a real mandança daquele lugar e, por finalmente, lembrar que nada demais haveria de ser que seus bacurís também pudessem ser comensais em mesas fartas.

Pois Arvinho não se queixava da vida, visto que tinha bom emprego depois de feito o grupo escolar e mais um tanto de ginásio, o que lhe permitia ler fluente e fazer as contas que todo mundo tinha que saber, sendo que o melhor mesmo é que fazia até mais, fazia de cabeça alguns cálculos de arrobas, a medida usada para pesar os bois, e isso lhe dava muito brilho quando os doutores estavam presentes. E essa sua sabedoria, Arvinho sempre creditava ao seu pai – o velho Tião Mocó. 

(A seguir, ARVINHO II continua com o ardor da vingança - CAPÍTULO 04) - Clique aqui para Ler 

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