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Contos E Crônicas

Capítulo 2 - Mané Boca-Larga

"Da cara escorreram lágrimas e ranhos que viraram barro com a poeira de onde ficou caído naquela noite..."

15/02/2023 - 10:26 | Atualizado em 27/11/2023 - 11:06

MANÉ BOCA-LARGA

 

A mula lobuna era também de muita serventia, todo fim-de-mês, para as compras na Venda do Mané Boca-Larga - o rádio-peão da redondeza - pois que a ele cabia compartilhar as notícias novas com a freguesia. Boca-Larga dava mais ênfase aos casamentos na marra das virgens caídas em tentação e aos deslizes de desditosas esposas, tudo sempre segredado em tom de intimidade ao pé-do-ouvido de um por um dos fregueses.  Com ar pesaroso, também participava a todos os ocorridos de brigas e surras e até matança de gente - assunto não raro por ali.

"Mané Boca-Larga - o rádio-peão da redondeza..."

Pois foi à vista de Mané Boca-Larga que Tião Mocó há uns par de anos atrás cometeu um desarranjo. Foi mesmo aí nessa venda de estrada que Boca-Larga percebeu Tião sussurrando rezas e repetindo uns números no entremeio. Ora usando as mãos em concha se encostava num canto de parede para ouvir a própria voz, ora andando pra lá e pra cá, o que deixava Boca-Larga mais ressabiado ainda e até disse para a esposa “arguma coisa errada tá se dando com esse hómi”. E, só espreitando, ficou à espera da notícia.

Esse fato se deu há pouco tempo com lembrança ainda quente . Foi numa certa tarde, quando o poeirão de terra vermelha anunciava a chegada do “coronel” Valdecruz - o patrão, numa ca minhonete amarela carregada até as tampas. A carroceria parecia até mais lotada naquele dia que das outras vezes. As compras foram fartas.

Tião correu para o meio da estrada de forma a garantir que o patrão não passasse direto.
- Tô com pressa, Tião, monta aí que te levo. 
- Não carece, patrão, tô co’a muntaria. E silenciou, esperando a notícia.
- Então, se não tem precisão, vou tocar pra casa. Tenho umas contas pra fazer antes que anoiteça.

"...chegava o doutor Valdecruz, o patrão, numa caminhonete amarela carregada até as tampas."

Como não falasse nada, ressabiado Tião lhe perguntou:
- Mas e o bilhete, patrão? Nós ganhamos, não foi? Ganhamos!
- Mas qual o quê, Tião! Do que está falando? Deu em nada, você me fez gastar dinheiro à toa. E ‘tô com pressa, vou tocando! Me deslancho na frente que tenho muita coisa pra fazer.

Contrariado, Tião baixou os olhos e fez um muxoxo. Calou-se e saiu do caminho. Boca-Larga  assuntando algo errado, continuava ali, só na espreita. 

Silencioso num canto do balcão, pediu mais uma, a terceira, como nunca fizera antes. Olhava o cálice de vidro grosso, levantado até a altura da luz, como se a vista pudesse atravessar a branquinha até alcançar o outro lado da vida. 

- “Sabe-se lá, muié, o que se passa com esse hómi” – Boca-Larga cochichou com a esposa cumpliciada no espalha-merda das fofocas, ela também se coçando de curiosidade.

E como agora cada dose ia numa talagada só, perdeu-se a conta, o que tanto faz porque caderneta de bêbado não tem fiscal. Tião Mocó começa a soltar a língua enrolada, fanhosa, melosa como só podia se dar com o pau d’água noviço. Inicia um discurso onde a sintaxe sai da ordem natural: sujeito, predicado e complementos são trocados de lugar. Mas os qualificativos prevalecem:
- O fio da puta do meu patrão!  

Esse rompante quase soou forte - um ato rebelde contra o patrão.  Mas Tião Mocó de São João da Ocalina não tinha jeito pra comandar uma rebelião - nunca seria um Zapata ou um Julião. Dava vontade mas não podia, vocação tampouco tinha para agitar colonos oprimidos contra seus patrões... além de que a massa ali representada não passava do Seu Zé da Rosa sentado no banco de tronco perto do balcão, Juca Trovão no primeiro degrau da escada da porta, outros dois desconhecidos juntos e sem assunto na única mesinha vermelha da Brahma. Tião só podia mesmo era desabafar a triste sina que a vida lhe reservara. 

Tirando a vista do infinito, Juca Trovão vira-se duro para Tião Mocó e dá um berro:
- Fala do acontecido, homem! – Já que começou, agora conta, não é não, Seu Dito? – e bateu o copinho na mesa de lata para despertar o parceiro do lado já de cabeça pesada.

Mané Boca-Larga pegou no ombro de Tião e o acudiu:  
- Tu precisa desabafá, Tião! - via que estava para nascer uma notícia nova, quiçá uma grande bomba para abastecer a semana da freguesia.

E foi assim que ele contou o que se tinha passado certo dia que o Dr. Valdecruz o levou de caminhonete até a cidade e depois das compras parou na Caixa Econômica para conferir os seus haveres. Tião Mocó, aguardando o patrão, reparou o balcão coalhado de bilhetes e, atônito, viu o número do sonho que teve numa noite dessas que nunca mais se esqueceu: 29162 – era isso: um número de loteria! Trêmulo, indicou o bilhete à moça e pediu para separar, ia esperar pelo patrão.

Atônito, Tião Mocó viu o número do sonho que teve numa noite daquelas e nunca mais se esqueceu: 29162.

Como estava no último quarto do mês, já não tinha nenhum no bolso, só lhe sobrava a fé. De volta, Dr. Valdecruz rapidamente resolveu a questão.
- Eu faço o investimento e se der, partimos o prêmio no meio – e nisso guardou o bilhete no bolso interno do paletó. 

E Tião Mocó continuava contando... mas, nessa altura, com o álcool já queimando as ideias, com uma espécie de oco na cabeça, para alegria de Boca-Larga, Tião não parava de contar:
–  E hoje deu na rádio... quem deu a notícia foi o Chuvisco... é verdade, verdade, verdade! O Chuvisco pode confirmar...  E repetia os números:  
- 2-9-1-6-2 - Tião não os esqueceria jamais.

Bebeu todas e voltou tarde, sozinho carregado pela mula. Na cara escorreram lágrimas e ranhos que viraram barro com o pó do chão onde ficou caído naquela noite, aos pés da mula lobuna. 

Mas o doutor se fez de mouco aos apelos do cabôclo, deixando claro  que não iria compartilhar aquela ventura que lhe caíra nas mãos por graça e obra de Tião Mocó . Assim ficou e então nada mais se falou...

Muito tempo passado, Arvinho, o filho mais velho, agora homem feito, veio a saber desse infortúnio por conta do próprio Mané Boca-Larga que  contou-lhe toda a história. Burilando os detalhes, Boca-Larga enalteceu o caráter e a coragem de seu pai pelo silêncio sobre o assunto como a dizer que ele se privou de falar porque a acusação ao doutor nunca poderia ser provada e, ao mesmo tempo, não ia querer confessar seu inefável engano sobre o caráter do patrão. Mas passar por tolo era uma dor que nunca acabaria.

É curioso notar que, ao elogiar a atitude de Tião Mocó, Mané Boca-Larga demonstrava o seu próprio jeito bocudo de ser. Mas, em Arvinho, isso calou fundo. Ele ficou agradecido visto que, assim, incapaz de segredos, Boca-Larga acabou por ajudá-lo a entender esse jeito taciturno que o pai adquirira a partir de um certo ponto da vida.  Mais que o dinheiro, tinha a questão do desaforo, uma coisa que um caboclo de honra nunca ia querer compartilhar com um filho. Finalmente estava claro para o filho o viés que afligia o velho pai.

- Ara! Tem nada não, o que passou, passou, disfarçava Arvinho. Falava da boca prá fora porque era impossível apagar o ardor pela vingança.


(Veja no que vai dar essa história no capítulo seguinte: ARVINHO I, filho de Tião Mocó, com o ardor de vingança) - Clique aqui para ler

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