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Contos & Crônicas

Capítulo 1 - Tião Mocó

"Tião, como o ratão do mato, mocozava tudo o que tinha e como era pouco prezava muito pelos seus pertences e, por isso mesmo, se casou com mulher prendada que quase não saía..."

15/02/2023 - 10:23 | Atualizado em 05/01/2024 - 16:34

Tião Mocó

 

“Deus-pode-Deus-quer-hei-de-vencer-valha-me-nossa-senhora-mãe-de-Jesus-de-Nazaré-a-vaca-mansa-dá-leite-a-braba-dá-quando-quer...Deus-pode-Deus-quer-hei de vencer...”

Enquanto o patrão na cidade via uma trancaiada de coisas para a fazenda, a dúvida de Tião Mocó lhe comia o miolo:  será que o patrão já sabia o resultado, estaria com o bilhete no bolso? “Deus-pode-Deus-quer...” e não parava de repetir a reza única que conhecia, além de uma outra do Padim Ciço e do pai-nosso e da ave-maria - estas que todo mundo também sabe. Mas ia entremeando com a ladainha que parecia mais forte e casava bem com o motivo do seu desassossego.

“Deus-pode-Deus-quer-hei-de-vencer-valha-me-nossa-senhora-mãe-de-Jeus-de-Nazaré...” falando com a boca quase fechada, só o beiço movimentava um pouquinho igual o assopro do assovio meio preso, aquele de chamar as galinhas na hora do farelo.

Tião Mocó soube da notícia porque deu na rádio no fim de tarde depois da Ave-Maria que ouvia todos os dias e era falada pelo Padre Miguel - aquele que era antigo na cidade e tinha batizado seus filhos, fez seu casamento, também casou suas duas irmãs e mais todo o povo que conhecia na cidade porque a cidade era pequena e todo mundo era amigo. O padre já estava velhinho, acudia as pessoas simples e de vida difícil, porque faltava médico, porque faltava dinheiro, porque faltava tanta coisa... e acalmava os ricos que eram poucos mas sempre tinham uns desarranjos com a mulher, com os filhos e com os nervos quando chovia de mais ou de menos ameaçando a safra. Quando geava então... nem se fala. Quando quebrava uma das máquinas de beneficiar café, milho e arroz ou quando ficava de tulhas cheias por falta de comprador – ou outro assombreio desse qualquer.

Pois então, Tião Mocó soube da notícia depois da Ave-Maria do Padre Miguel e antes da Voz do Brasil. Nesse intervalo era o locutor Edson Espinhaço que ficava falando, ele que era conhecido nas ruas como Chuvisco porque falava cuspindo e o povo só falava com ele de longe. A rádio da cidade só tinha dois locutores e falava-se que o outro gostava de falar pertinho do microfone para a voz ficar mais grossa porque achava que assim as moças entravam em delírio, isso para não falar outra coisa. Conta-se também que o outro locutor gastou uns tantos mil réis para comprar um microfone só seu porque antes quando falava no microfone umedecido pela excreção do Chuvisco ele ficava com nojo e tinha que usar o microfone falando de longe mas assim a voz não engrossava do modo que ele queria e as moças não iam eriçar daquele jeito que se sabe.

Mas era o Chuvisco que falava as notícias e no meio delas dava o resultado da loteria. Quando Chuvisco falou os números do bilhete premiado "29162... vou repetir 2-9-1-6-2", Tião Mocó entrou em delírio.
Pois então é bom que se diga que Tião Mocó tinha esse apelido porque igual que o ratão do mato que escondia sua comida na toca -  pensou de imediato no futuro lindo que passaria a dar prá sua prole, que não era pequena, mas vivia decentemente porque dormia no colchão de palha com bons corta-febres e se fizesse muito frio tinha ainda o acolchoado de pena de ganso; comia direito porque feijão e arroz dava por ali mesmo e sempre tinha um porco engordando no fundo do quintal que quando abatia dava para encher  dois ou três galões de alumínio dentro da própria banha para conservar, e o suã era a reserva mais disputada.  Sua mulher tinha até máquina de costurar da marca Singer para fazer roupa nova com os  tecidos comprados na loja de secos e molhados do Seu Antunes ou para consertar as velhas que ficavam como novas; e nunca faltava querosene pros lampiões que alumiavam e atraíam as mariposas e também esquentavam os cômodos.  

"Tião Mocó, como o ratão do mato, mocozava tudo o que tinha... mas não ajudava os cabeças ôcas, aqueles que lhe imputaram tal apelido...
Foto: Foto: Emanuelle Pasa (UFRS)

Tião, como o ratão do mato, mocozava tudo o que tinha e como era pouco prezava muito pelos seus pertences e, por isso mesmo, se casou com mulher prendada que quase não saía, também gostava de casa, seu cantinho, seu próprio mocó.

Já que prezava tanto a família a quem nada podia faltar, Tião também não dava nada de graça aos que bebiam demais ou jogavam truco a dinheiro, imagina então de quem gostasse da zona de meretriz e desse dinheiro para mulher à toa se esquecendo da família, da patroa e dos bacurís! 
Mas Tião nunca foi mofina com os amigos chegados quando algo lhes faltava e também com os necessitados como Seu Paulo, o velhinho que era chamado de São Paulo da Garoa porque vivia cantando aquela música que fala da garoa de São Paulo e por isso diziam que ele veio de lá. E Tião via que São Paulo da Garoa era muito velho e meio pinéu, mas não incomodava ninguém pois só gostava de cantar, rachar lenha ou fazer pequenos biscates para as famílias que lhe davam o que comer. Tião protegia São Paulo da Garoa e outros necessitados por qualquer desgraça mas não ajudava os inconsequentes de cabeças ôcas, aqueles que lhe imputaram esse apelido.

Não parava de pensar no patrão que estava na cidade com o seu bilhete premiado:  será que ‘tava no bolso, será que ele foi conferir, a estas horas já saberia? “Deus-pode-Deus-quer-hei-de-vencer-valha-me-nossa-senhora-mãe-Jesus-de-Nazaré...” Guardou aqueles números de cabeça e nem sabia porquê "isso era coisa de Deus!”. Quando Chuvisco anunciou aquela meia dúzia de números levou um susto, ficou aturdido, não acreditou, perdeu o chão. Teve uma tremulação danada, tentou se acalmar, arrepiou-se, quis gargalhar e até chorar. Teve um medo sabe-se lá do quê, mas lembrou outra vez dos números  "2-9-1-6-2". Tinha certeza, o patrão na cidade haveria de conferir como lhe pedira - “ahhh, ele vai se regalar com a sorte de ter um Tião como seu amigo”. Foi quando Chuvisco anunciou que ia repetir o número e disse ainda mais eufórico: "e esse bilhete foi vendido aqui na nossa freguezia. Quem será o felizardo?".  E repetiu os mesmos números que Tião guardava de cabeça - ele era o felizardo!!!
– “Vixe, Maria!”.

"O Caboclo Montando em Sua Mula"
Obra do Ateliê Ditinho Joana de São Bento do Sapucaí/SP 
[email protected]

Tião Mocó não tinha bicicleta, nem charrete,  só a velha mula lobuna mas não convinha precipitar-se pelo carreador escuro até a cidade porque a noite estava entornando .  Tinha de aguentar firme e até que viesse a certeza, essas coisas são como madeira de lei que não quebra e nem enverga, firme como madeira do pau-roxo. Com medo de erro, medo da inveja, de criminosos, da desgraça, rezava:  "Deus nos acuda Oh, Pai nosso!”. Recorreu também ao Padim Ciço: “...pelas-lágrimas-divinais-livrai-me-dos-invejosos-e-das-mãos-dos-criminosos-e-dos-laços-do-satanás”. 

 

(Veja na sequência "MANÉ BOCA-LARGA" e o fado de Tião Mocó com o seu bilhete premiado) - Clique aqui para Ler

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