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Contos & Crônicas

A Mula Ruana

"...nas romarias, que eram dias de gala, fazia inveja à toda peãozada e alvoroçava os piás quando ouviam o tilintar das traias de argolas de alpaca que balouçavam tudo anunciando a sua chegada."

15/02/2023 - 10:14 | Atualizado em 28/07/2023 - 11:39

A MULA RUANA

 

Conto de DJALMA B. DE LIMA
Conto Selecionado e publicado na antologia LINGUATECA

 

Empertigada, Ruana tremia nas ancas e arrepiava os pelos, sapateava os posteriores - ficava espevitada negaceando a velha albarda. Fazia até parecer que Tião Mocó fosse um peão forasteiro – daqueles que chegam para atinar a montaria desavisada.

Era só para se mostrar, já que no dia a dia era demais de boa no serviço e, nas romarias dos dias santos, muito exibida. Tinha lá os seus aperreios, que Tião Mocó tolerava por conhecer bem a natureza dos muares.

 Mula Ruana - Ilustração: Claudio Crespo


Tião tinha jeito para tudo, fosse na hora da plantação, na lida com o gado ou no trato com os animais em geral. E com as montarias então é que não ia deixar de lado esse tino especial que era muito seu.

“Uoou-Uoou” – por aqui começava a conversa entre os dois, seguida por um bom afago, e Ruana ia se entregando. Já não mostrava renitência e maus modos, coisa de animal jovem e sem desbaste, que não era o seu caso. Tião agarrava com a mão esquerda sua crina de escovão que vinha da nuca até o alto da cernelha, enquanto a direita deslizava pelo dorso – u’a mão grossa forjada na labuta diária que parecia uma rascadeira daquela que alisa o pelo e arranca carrapato mas não cavuca o couro; coça mas não bole o lado da besta. Desses agrados, nascia a simbiose entre eles: depois disso, Tião Mocó e Ruana formavam um só conjunto.

Em dia de trabalho, numa canga arqueada no lombo, bem forrada, Ruana puxava a carroça, em fim-de-semana a charrete da família. Para a lida diária, Tião usava o arreiame antigo de palha que, se não tinha boniteza, tinha bom cômodo. Mas para as romarias, que eram dias de gala, fazia inveja à toda peãozada e alvoroçava os piás quando ouviam o tilintar das traias de argolas de alpaca que balouçavam tudo anunciando a sua chegada.

Nessas horas, Ruana sabia que ‘tava prá lá de bonita: um pescoço piramidal de fina tala atirava-se altivo para a frente, as narinas sugavam o ar com força sem nunca arfar hostil ou como doente. Os olhos eram espertos dentro da geometria de uma testa comprida enfeitada com medalhas do metal prateado que iam até a base de orelhas sempre atentas a tudo que se passava ao redor. Isso tudo contentava Tião Mocó mas não a ponto de ficar tão cheio assim... afinal “vaidade não se leva à tumba”. Sua sabedoria rústica o prevenia do futuro: “hoje ando de mula mas amanhã pode ser só um solado de alpercatas”.

Ruana era danada de ligeira e inteligente. Nos corredores do cafezal recém-plantado, Ruana tinha rumo, nunca soterrava as mudas plantadas em covas com um palmo de fundura e protegidas com a lenha nobre tirada da derrubada da floresta.

Macia, podia marchar o dia inteiro. Melhor nas pradarias, onde marchava livre. As toras em carvão, sobra das queimadas, esperta, Ruana desviava fácil. Vencia rios, riachos e charcos, ora no pulo, ora no empuxo. Que força tinha a danada, obedecia sempre os comandos do cavaleiro miúdo e habilidoso.

Quando Tião Mocó chegava na mangueira, ela corria para a cerca, fungava no seu peito. Sofreguidão nos cochos, debulhando as espigas, quanta alegria! Depois dos afagos, pronta, parecia pedir o arreio no lombo.

Cavalgadas até o Rio Ivai, era tempo de pesca. Coisa boa, desde os tempos de menino. “Trilha prá macho” - e ela rompia por baixo a cipoada rasteira e, por cima, a mata fechada. Uma trilha pouco, ou quase nada, pisada. Sabida que só, orelhas armadas, atentas, anunciava presença de bicho estranho. Poucas paradas, água, uma espiga, corajosa, nunca pediu arrego. Não precisava ser guiada, por instinto sempre chegava no destino.

No ombro, Tião Mocó trazia a pesada cartucheira belga calibre 16, suspensa pela fita estampada - uma santa protetora na jornada longa que ia da madrugada até a noite avançada. E garganteava:
- Não fosse o côm’do de Ruana, eu não tinha mais ombro!
- E o cansaço? – Perguntei.
- Vê lá, sô! No lombo de Ruana ninguém tem esse entrevero.

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(Este conto, publicado na antologia LINGUATECA, não faz parte da série A Saga de Tião Mocó)

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